A Lisboa que nos aguarda
Macau, 19 de novembro de 2023
Há países que são corpos.
Poros de montanhas que uma pele arrepia, portas que se abrem ao grito de um beijo, estradas que abraçamos em veias de agitadas pulsações. São solos de culturas e de troncos que guardamos no sabor de salivas. Membros arrancados da terra que colocamos em vasos, regados com a memória de lençóis desfeitos em ecos silenciados pela respiração ofegante de um quarto.
Há corpos que são restos de nós.
Pedaços de sangue espalhados por geografias de casas onde mergulhámos em lutas e paixões de outras vidas. Sussurros de palavras em movimentos descontínuos de lágrimas. Saudade de quem partiu. Ânsia de quem voltará.
Agarrou-lhe nos dedos entrecruzados, numa calçada pintada a azul sobre o branco incandescente do lioz. Beijou-a. Lisboa lembrada em rotas de colonização que espreitam ruas asiáticas repletas de corpos desprevenidos do amanhã. Sorriu à mão longa que a apertava no frio olhar de um castanho quase claro. Apertou-lhe a mão com a certeza de um calor que adormece.
Uma península asiática cravada numa baía de ostras.
Uma carta.
Várias cartas.
Vida que trocas de letras desvendam.
Ofereceu-lhe um caminho pela carne que cobre os rios e histórias do país que lhe ensinou o mundo. Abriu-lhe a janela de ventos passados. E, juntos, sobrevoaram oceanos para espreitar cantos de casas onde não estavam.
Percorreram rotas de sons que desembocariam em miradouros com vista para ilhas e arranha-céus. Países que ganham vozes em imagens de danças. Embriaguez de outros corpos que aceitamos em troca de um prazer que nos arranca clamores. E, por vezes, nos rouba almas enterradas em cantos de velhas artérias.
Abriu-lhe a porta.
O Outono chegou carregado de pássaros e de mares.
Do outro lado, a China que lhe estende a mão para novas ilhas de línguas e florestas.
Os casacos que se tiram do armário em noites de risos e confidências.
Gares e portos que assistem à chegada e partida de inesperadas palavras que se estilhaçam em terras onde não estamos, escritas de miradouros que nos olham para dentro.
O sol num aeroporto daquela Lisboa que guarda a raiz que sustem o tronco que lhe alimenta o corpo.
A noite num aeroporto desta Macau que lhe oferece o presente de países que se percorrem: ainda assim, a companhia da Saudade de quem ansiosamente se imagina.
A Lisboa que me espera. Raízes que nos enredam.
Um corpo que se aprende a ler.
Cantos de uma casa que nos aguarda.
Aterrar, em Lisboa, neste dezembro que se aproxima.
12 de Novembro
Há troncos forjados a ferro.
Não se cortam. Não se abatem. Não se curvam.
Referências de vidas que nos crescem no corpo. Olhar que nos respira num abraço de memórias. Braços que nos agarram em inesperados precipícios.
12 de novembro de 1948: o Marão, as curvas da estrada, aldeias de granito onde gélidos Invernos desnudam crianças de pés nus e filas se sucedem em fontes de cântaros sedentos de lentos verões.
Tinhas nascido.
1957: a Lisboa que percorres só, 9 anos de uma tão pequena vida, lágrimas numa longa viagem que, das carregadas montanhas do Nordeste, te transportaria em lentos caminhos de ferro até à capital. Sozinho, chegarias à Santa Apolónia de uma Lisboa pintada a cinza.
E não mais esta cidade deixaria de te pertencer.
Onde desvendarias estradas, bibliotecas, a longa tropa forçada, a guerra de que escapaste, trabalho, sucessivos quartos alugados, cafés, certezas, debates.
A cidade onde levantaste o punho a 25 de Abril de 1974.
Onde caminhos de resistência te enchiam a alegria, o riso e a força do corpo.
Punhos cerrados pela certeza do mundo que rasga a luta.
Sábias palavras que sabias carregar.
A tua ausência.
A minha dor.
A NOSSA FESTA
Macau, 2 de Setembro de 2022
Amanhã é o primeiro dia do resto do ano.
Voltamos Sempre. A cantar. A transpirar. A trabalhar. Madeiras, tubos, toldos. Relva e armazéns que se enchem. Brindar à Luta que nos cresce. Um casaco na noite que a baía traz num vento. Orgulhosos da terra que parimos nos três dias que nos carregam pelo mundo.
O turno do dia seguinte. Passos lentos que se levantam da tenda. Pele estremunhada. "Bom dia, camarada". "Não há água quente". Um berro contido: "Merda. É sempre a mesma coisa". A água gelada que nos arranca a ressaca do sono mal dormido. "Tens turno agora?" Uma tosta e um sumo. "Vou ali ao Café da Amizade". O telefone onde as mensagens se falam. "Bora a Viana!" "Eh pá, já estou aqui com uns gelivodkas em cima da mesa!” As bichas. As imperiais. Correr. Rir cada vez mais alto. O sorriso dos cantares que as horas entoam. As morcelas. A posta. Os jantares que enchem filas. As mesas que ouvem os pés e as palmas das cantigas. A Cidade que cresce. A Carvalhesa repetida em gestos à exaustão. De ano para ano, um minuto a menos de dança; ainda assim, arrancando aos pés a poeira que a relva gasta nos transpira. Tutururututu, tututururutututu, Tutururututu, tututururutururu! Ver a juventude que fomos nas Vozes Ao Alto que ordenam a força dos dias. Lembranças que se riem. A lama do Alto da Ajuda. O meu pai. O colo que me transportava para o carro perdido. E ainda assim: o cansaço da alegria. Amanhã havia mais. Camaradas. Amigos. O abraço no grito que ecoa quando o sol brilha para todos Nós.
Namorámos. Rimos. Crescemos.
Segunda-feira. O Adeus nas olheiras que nos empurram para um café. Custa voltar ao resto do ano. A luta na alegria que nos lança Avante. Canta, canta, amigo, canta! Vem cantar a nossa canção! Amanhã, e nos próximos três dias, não poderei estar na Nossa Festa. Ainda assim, queridos amigos, queridos camaradas, com todos vocês estarei, Cantando, Sempre.
Pedro
O Pedro partiu.
Partiu hoje.
A luta foi encarniçada, terrível.
16 anos de um combate que o Pedro, que a Elisa, travaram: a Elisa, a mãe do André. A Elisa, a mãe da Rita. O Pedro, o pai do André. O Pedro, o pai da Rita.
O Pedro.
Eu tinha acabado de fazer 18 anos e tinha 12 contos numa conta bancária. Era o dinheiro que os meus pais haviam, gradualmente, poupado, e que haviam decidido oferecer-me quando eu atingisse a idade adulta legal.
No dia 30 de junho de 1996 tive, finalmente, acesso à conta bancária. À tão desejada conta. Decidi gastar tudo. Mas tinha de o fazer com algo que fizesse a diferença dos dias.
Eu, que nunca tinha andado de avião.
Eu, que o mais longe onde tinha ido, para lá das montanhas do Marão e das águas do Guadiana, havia sido o lado de lá da fronteira raiana.
Comprei, então, o meu primeiro bilhete de avião. Para Londres. Cidade onde o frenesim da luta das ocupações nos fazia imaginar outras vidas para além da Lisboa que nos enchia os dias. Iria juntamente com o Pedro, o meu querido amigo Pedro, o nosso querido amigo Pedro.
A amizade leva-nos sempre por grandes caminhos.
Foi a primeira vez que voei.
E que estoirei tudo o que tinha. De uma só vez.
Uma mulher que crescia com a estupefação de um olhar novo: nunca tinha visto as nuvens de cima.
Ficámos em casas ocupadas. Andávamos pelas ruas e pelos parques e pelas ocupações. Raramente nos sentávamos num bar. Uma cerveja ocasional levava-nos o orçamento de dois dias.
Connosco, carregávamos atum, pão, cervejas compradas em supermercados. E fumávamos tudo o que nos apetecia fumar. Tanto e tanto.
Foram muitas conversas, madrugadas fora, por entre corredores de ocupações.
Faríamos, no ano seguinte, uma viagem a Amsterdão. Tenho poucas memórias.
Carregávamos atum, pão, cervejas compradas em supermercados. E fumávamos tudo e mais ainda. Empedernidamente.
Faríamos, ainda, no ano que se seguiria, um inter-rail, pela Europa de leste. Desta vez, com o Ricardo.
Dormíamos em parques de campismo. E em pousadas da juventude. Até na rua.
Carregávamos atum, pão e o resto. Lembro-me de Brno. A cidade que não tínhamos previsto visitar. Um copo à noite. Uma casa de alterne que não percebemos que era de alterne. O pedido de três pivo. Uma pequena confusão entre o checo e o inglês. O Ricardo que especifica que quer uma cerveja “loira”. Éramos tugas, o que se há de fazer. Não adivinharíamos nunca que, nos minutos seguintes, uma loira se prostraria à nossa frente, já bastante despida, e dançaria numa trave, apenas para nós: nós, os três portugueses, os então únicos clientes da noite.
Como sempre, carregávamos latas de atum e de feijão e de sei lá, e ainda sumos e também bolachas e água. Fazíamos das contas do dia-a-dia o que nos levaria cada dia mais longe.
Gozávamos e ríamo-nos e chateávamo-nos e discutíamos e bebíamos e ríamo-nos e dançávamos e ríamo-nos e conhecíamos gente e namorávamos e curtíamos. E discutíamos.
Pfff... O que nós discutíamos.
Telefonávamos aos nossos pais de cabines telefónicas.
Crescíamos. E cortávamos, apressadamente, o cordão umbilical. Queríamos voar.
O Pedro.
O Pedro que era um chato com as suas esquisitices. Que não gostava de tomate. Que era preguiçoso para cozinhar. Que, até quando descascava batatas, refilava. Que tinha aquela mania de bloquear computadores e telefones e sei lá. Que tinha aquela veia anarquista que nunca o abandonaria.
O Pedro.
O Pedro era físico. Daqueles tipos que olham o interior dos átomos e os leem. E que fazem aquelas contas complicadas. Intermináveis. E que olham o céu e o entendem.
O Pedro.
Na Faculdade, o Pedro andava sempre de preto, com botas da tropa pretas, e a porra de um alfinete espetado nas calças.
O Pedro.
O Pedro da Nossa Grande Elisa.
O Pedro que se apaixonaria pela Elisa. A Elisa que se apaixonaria pelo Pedro.
O Pedro e a Elisa que, juntos, construiriam mais de 20 anos de história comum.
O Pedro e a Elisa que dariam vida ao André. E à Rita.
A Enorme Elisa que terá sempre, para sempre, a mão de todos nós.
Porque a amizade é a coisa mais bonita do mundo.
Tu, querida Elisa, sabes que terás sempre muitos braços que te rodearão com a força desta aliança e ternura e amor inquebrantáveis que nos colam as vidas.
45 já são muitos anos, pá, dizia-lhe a amiga.
É estranho... Os 30 parecem eternos. E depois, catrapum! Isto corre rápido p’ra caramba...
O corpo. As frustrações. As memórias. As alegrias. Os homens.
31?, vinha a pergunta. É, 31, confirmava a resposta. Bem, mostra lá as fotos.
Stopover, caraças? Que merda é essa?
A tarde corria entre grupos de gente que enchiam as curtas ruas. Os cabelos longos, carregados de preto, a pele crua, o sorriso que rasgava a tarde. Há um castanho que agarra nos olhos. Suave. Pele tão lisa numa voz cortante. I want my voice back.
Do you smoke? O café tremia-lhe nas mãos da cidade onde cresceu.
What cocktails do you drink?
Cocktails?! I like a good beer. Or a good whisky. Cheiros no encontro da diferença.
And a book, I imagine. I gotcha.
Sombras que escorrem numa tarde de Agosto. O ar condicionado que ocupa um quarto alugado. As mãos gélidas em gritos que não são dor.
De repente, o choro que lhe apeteceu. As carnes que se rompem enquanto olha tectos que não via. Esta Lisboa que não abandona quem a cansa.
Voou imaginando que nunca aterraria.
I'm just doing a puzzle.
Estranha coisa esta: vir e não mais voltar. O vazio de uma cama desfeita. O céu que queima. As letras que não se leem. A porta aberta. Volta. Cantos do coração que se oferecem. Quando quiseres.Q
Lisboa, linda Lisboa; Lisboa envelhecida; Lisboa que olho cinzenta: corpo que, em breve, deixarei.
“E parto dentro de momentos / apesar de haver momentos / em que dentro a dor / não parte sem dor” (S. Godinho, “Parto sem dor”). E faltaram-me tantos abraços. E faltaram-me tantos beijos. E faltaram-me tantos amigos. Já me faltam os que vi. Faltam-me tanto os que não vi.
Horas que restam em dois dias de Adeus.
Macau, 16 de novembro de 2022
Nasceste a 12 de novembro. Foste registado quatro dias depois. Estávamos em 1948, em Peredo, bem para lá do Marão, onde, mandando aqueles que lá estão, as terras geladas de Invernos imploravam, em secos Verões, a água que teimava em vir sem pressa, em fontes onde jarros enchiam caminhos. Chão de amendoeiras em flor, de morcelas e farinheiras, de madeiras que esculpem corpos em sangue, imponentes, crucificados, única decoração de paredes gretadas de quartos e salas sem luz.
Uma casa onde uma varanda colonial guarda as marcas da humidade de vidas que, à noite, olhavam para corpos de caminhantes mal iluminados: Boa noite. Boa noite. Um poço com uma pistola que nunca ninguém encontrou, as bebedeiras e a crueldade de um pai cujas marcas de pancada escondias em fugidios sorrisos que, contigo já adulto, gritariam a luta necessária contra qualquer violência daqueles que dominam, contra todas as injustiças.
Querias voltar à terra onde nasceste.
Não pudeste. Não houve tempo.
Fui eu. Conduzi em curvas onde as montanhas da infância me lembravam repentinas e perigosas paragens. Levei-te, aqui, bem adentro, em abismos onde guardamos as mágoas que nos fazem dialogar com estrelas e planetas, imaginando palavras onde não sabemos ver rostos. Guardei as vozes de quem, no Inverno, no cheiro de uma lareira a arder, sempre te soube ali. Esta era a do Alexandrino. Era a mais novita das que aí vinham.
Foste comigo, pai.
Voltaste à terra que te viu nascer.
China, Yongmo Village, 22 de Outubro de 2022
Os olhos que fixamente a prendiam na porta. A miragem fendida, preta, inamovível, que lhe roubava a clareza dos dias. Certa vez, cruzou-lhe a resposta com a mesma rigidez que uma vista nos sonha. E sentiu tremer-se. Apanhou os cabelos encaracolados, despiu-se de vergonha, correu atrás da intensidade que os dias lhe cegavam. Esticou o braço, ofereceu um beijo, abriu o riso sob um bâton vermelho. E quando o corpo lhe crescia e as vísceras, agitadas, lhe vociferavam, tropeçou num fóssil que o pó gasto do tempo exumara. Desequilibrou-se. Gritou a raiva que a vida sentiu. Foi buscar uma pá. Com a ferocidade de um esquecimento que tão pacientemente se deixara descuidado, cobriu a memória descarnada que, intempestiva se havia manifestado. Só os ossos e as cicatrizes de violentos vergões haviam resistido à humidade de crateras e à fome de bichos. Foi buscar terra, muita terra, lá no fundo dos magmas dos mundos. Cobriu-a com uma montanha de pedaços de poeiras que o fogo de geografias havia arrefecido. E correu-se, de fora para dentro, espreitando o encontro com os olhos rasgados que a haviam estremecido. Perdera-os, porém. Sem saber nunca dizer quando.
Um dia, mais tarde, sem o tempo esperado, cruzou-os. Reencontrara-os. No entanto, reais, sombrios, térreos.
Estendera a mão para os provar. A leve nuvem de uma esperança. Num repente, amedrontada, caminhando, nervosamente, para trás, batidas em síncopes descontroladas, peles enrugadas em ferida, clamores violentamente surdos, ela virou as costas à ausência do calor que o corpo não viu.
E só então notou que nunca lhe ouvira a estrondosa manifestação do riso.
Na porta, síncopes batidas. Às vezes, desaceleravam, devagarinho, para, repentinamente, desbravarem caminho, galopantes, assustadoras.
Um instrumento media-lhe as batidas. Está tudo bem. As veias, simplesmente, envelheciam, desarmonizando 44 anos de caminhos. Preguiçoso nos trajetos conhecidos de um corpo deteriorado, o sangue corroía-lhe glóbulos e ideias. Mas as pancadas, persistentes, continuavam a encobrir-lhe os dias. Doíam-lhe as artérias.
Entreabriu o umbral sombrio. Carcomida de humidade, a porta rangeu no movimento que a desatravancou, lembrando-lhe a insegurança de uma chave que se esquece. Semicerrada num medo de antiguidade esquecida, as veias inundaram de uma circulação repetida as salas e quartos de uma velha casa. Nas costas, uma mucosa de três décadas de tabaco pontapeava-lhe as madrugadas. Gritava uma tosse rouca que ocultava os ventos de um tufão.
Está içado o sinal 1 de tempestade.
A garganta queimava-lhe a voz. Exigia a dor de um silêncio que ninguém adivinhava.
Anita, vês a ursa maior? E ela olhava o céu. E ela não a encontrava.
Onde estás?
A brutalidade do silêncio rememorava a intensidade ausente de uma voz perseguida. A porta entreaberta ocultava sombras cujos contornos adivinhava enquanto a veemência da angústia lhe quebrava o grito.
Sentiu um murro. E outro. E outro, ainda. Agarrou-se ao corpo vacilante, carregou-o até ao canto, suou o peso de veias sobrepostas, deixou-o cair, ruidosamente, no chão.
O corpo cansado ecoou mudo.
A obstrução de uma veia adensou-lhe o vermelho de um sangue gasto. Medrosa, fechou, com estrondo, a porta. E de novo, as pancadas, os embates, as batidas. Cada vez maiores. Cada vez mais fortes.
Estás aí?
Pai?
Anita?
Abriu uma garrafa de vinho. Fingiu inalar cigarros que não fumava. Embriagou as artérias que lhe explodiam em dores de memórias que os dedos crispavam em lágrimas.
Um vinho?
Pode ser, só tinto, por favor.
Pai?
O silêncio que morde a mágoa e que a arrasta pela cruel beleza dos rios da Floresta.
Ana!
Outra voz. Outras vozes.
Não te esqueças do Mêncio.
Não, não esqueço, mas agora oiço Alceu Valença.
E o ímpeto de Bethoven?
Que dialogue com a influência de Mozart, digo eu. E que se lixe. Apetece-me saltar ao som de Los Hermanos, já te disse.
Voo nas mãos de um homem que me carrega no forró de um estádio que vibra em alegria.
A Dandara que me carrega nos caminhos de vida com um violão e a voz carregada de uma dádiva que me largam em choro. Que ardência de Saudade de vidas que parecem lugares que não vivi.
Amei-vos a todos e tanto. E mais ainda. E tanto ainda e sempre vos amo.
A alegria que vejo despedir-se em lágrimas de amargura num aeroporto.
Quando?
Não sei, perdi-me.
O chão é branco. Limpo. As malas já foram enviadas para o porão.
Estou só, na sala, um café, um debardeur às riscas azuis e brancas.
Será que voltarei a São Paulo?
Si tu pleures, Ana, c’est parce que tu étais heureuse. Ne t’inquiète pas, ma chère Ana.
Merci à toi, mon compagnon de chemins et de larmes et de vies et de jeunesses que les géographies ont tué dans l’ambition d’un amour qu’un mot a annoncé la mort.
Um avião. Dois aviões. Um helicóptero.
O medo.
Las palabras de pase son estas. Tienes que memorizarlas. Si un avión pasa, te vas con Esteban, a tu izquierda, por la montaña. Él te guiará.
O corpo mordido por mosquitos. Teo que, na ausência de uma selva, salva feridas com um anti-histamínico que me arranca o medo dos dias e das semanas. Que se seguem.
O abraço que me levanta do chão. Voltaste, Ana!
Giro e giro em mãos que me carregam na felicidade de um abraço de cintura que ciranda. E rodo e rodo e rodo. Entonteço, rio, sorrio, beijo-te, meus amores, beijo-te a ti, que me beijaram, e continuo a girar e a girar. Um jogo de cartas, em Cayenne.
Pai?
Ouves-me?
Hoje, quis escrever. Tenho aquela fotografia em que tu, tão novo tu, me abraças com os abraços da certeza que sempre me protegeriam daquela falésia, tão ferozmente perto.
Vai, Anita. Segue. O caminho é o que for. Mas é o teu.
E tu?
Eu já segui o meu.
Giro e volto a girar. Vejo serpentes erguerem-se em poços lúgubres de Aomen, roubando esperanças que se afogam em baías cor de carvão.
Eu encontrei a mulher da minha vida.
Encontraste?
Encontrei, Ana.
E vi-te casar. Não me convidaste, porquê?
Os 38 anos em La Habana. Comandantes que me ofereciam um jantar e um caminho que se abria a uma China que ainda não tinha tocado. A beleza de um Malecón com um Habana viejo.
E vocês, meus queridos, onde estão?
Como a noite brilhava na esperança de uma Colômbia que, neste ano de 2022, vibraria numa festa que à distância de continentes eu festejava com um vallenato de memória, em montanhas, nesta China que me enraíza o presente. Los caminos de la vida não são nunca como os pensamos.
Tchim-tchim a ti, minha querida selva. Guardarás sempre um pedaço de uma veia numa caleta de amor e solidariedade e esperança e balas.
Sangue que escorre num corpo ferido. Tiros que amedrontam a vida. Um suspiro que oiço.
Brados.
Gosto tanto de ti.
A Saudade que come os dias.
Os meus 44 anos que, hoje, chegaram.
“É que o prazer e o sofrimento não passam de um contraste; em luta perpétua e contínua, eles se acrisolam um no outro e se depuram; não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça.” (José de Alencar, O Guarani).
Escrevinhavas notas e anotações em diferentes materiais. Papéis esparsos, notícias de jornal, legislação que imprimias; até em guardanapos, daqueles de papel fino que as pastelarias portuguesas espalham pelas mesas. Em exemplares que acumulavas no teu insatisfeito e curioso saber.
No interior de livros, cuidadosamente empilhados, escondem-se notas, recortes, citações. Em Pátria, do Guerra Junqueiro, em folhas copiosamente dobradas, estava a transcrição completa, verso a verso, estrofe a estrofe, pela tua mão, do poema. A obra não te bastava. Tinhas de o reescrever, reler, quem sabe, até, memorizar. Todos nós guardamos cantos e recantos que não expomos. Não sabia que declamavas (de memória) poesia. Soube-o, apenas, quando te ouvi pela voz de quem o sabe.
Não me surpreendi. Fiquei, de certa forma, feliz. Tinhas vida, muito mais vida, para além daquela que eu olhava.
Tu, pai.
O meu pai.
Folhas amarelas, mas cuidadosamente guardadas dentro de livros impressos. Em O Guarani, sublinhado a lápis, já no final da obra, uma linha fina: "não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça". Trouxe o livro, para Macau. Guardo-te numa frase que cuidaste deixar sublinhada a carvão fino. Em geral, destacavas o que te interessava com régua, tudo muito certinho, a caneta de cor vermelha guardada para o que consideravas ser importante. Reescrevias quase tudo. Perguntavas, relias, procuravas, comparavas. Em O Guarani, adivinho a pressa do sublinhado. Não estavas, certamente, na secretária, não tinhas a régua à mão e – como tantas vezes o fazias em tantas outras obras – "o prazer e o sofrimento não passam de um contraste". Com o cuidado de uma linha que se tenta deixar direita.
É a única frase, ao longo de O Guarani, que deixaste marcada.
Gosto de pensar que conseguiste atingir a felicidade fazível, ainda que com a assunção de qualquer coisa de dever moral ou de responsabilidade social, como dizias, que te tolheu, acrescento eu, e tantas vezes te disse, outras alegrias e mundos possíveis. Não julgo. Dói-me, apenas, como te disse e escrevi e pensei, as dores da mágoa que rege os dias. Esperando, ainda assim, naquele discreto destaque em Alencar, acreditar no encontro com uma experiência de alegria, com uma qualquer aproximação à felicidade. Ainda que possível. Como possíveis são, aliás, todas as felicidades.
Foste querido. Amado. Respeitado.
Nos abraços que ouvi. Gostava muito do teu pai. Vi lágrimas em quem apenas ali cruzei.
No dia 24 de fevereiro, a Federação Russa dava início a uma operação militar na Ucrânia. Uns dias antes, em casa, a ferida a crescer-te, o amarelo de um fígado em falência cobrindo-te o azul dos olhos, a vertiginosa inteligência sempre viva, o corpo que emagrecia num inchaço de dor, pensos opiáceos adormecendo a angústia, comentavas - numa voz desconhecida, quase surda - a situação internacional. A guerra que adivinhavas. E que buscavas força para debater. Mencionavas as bases militares da Nato, no leste da Europa. Sabia-las de cor. Depois, cansado, fechavas os olhos. Anita, preciso de descansar. Com o cuidado que a ternura e o medo me incutiam, ajeitava-te no sofá. Ou caminhava, muito devagar, segurando-te nas mãos, para te levar até ao quarto. Compunha-te a almofada. Dava-te a mão. Queres que te leia um bocadinho o jornal? E olhava-te. Continhas as lágrimas que me rasgavam a pele. Mas sorria-te o sorriso capaz. A face seca. Nunca tinha experimentado uma dor tão crua e lancinante. Nem quando, a meio caminho dos 35 anos, o ventre em dor agitada, sanguinolenta e bárbara, a vida, por um triz, não se me perdeu. Só no hospital onde te fui encontrar internado, depois de o médico oncologista te anunciar o adivinhado, deixei à vista o choro. Levantei-me repentinamente do sofá onde estava e, com uma mágoa que não controlei, abracei-te com a força que encontrei. Vi-te lágrimas, pai. E a tristeza de uma amargura que derrotou o ânimo da vida.
Não consegui. Dessa vez, pai, não consegui o sorriso exequível, o aço de uma muralha de que tanto precisavas. Desmoronei. Desmoronaste. Deitaste-te na cama daquele quarto de hospital de onde, nesse mesmo dia, uma vez mais, me recusaria a sair. Desde então, deixei os golpes romperem-me a carne. Mas prometi-me que nunca choraria ao teu lado. A dor que te consumia não precisava da dor da minha dor. Somos uma muralha, pai. Com a nossa razão, justiça, mundividência, combate, luta. Tu, sobretudo. Eu, por herança e certeza do caminho ensinado.
Chorava as lágrimas onde não as visses. Na rua, nos cafés, nos ombros que me acolhiam.
A sabedoria que nunca te largou. Ainda fui espreitar Kaliningrado na internet. Porra. Eu tinha estado ali mesmo ao lado. E nem do nome do enclave russo me lembrava. E, uma vez mais, quem me ensinava o mundo que não andou, mas que leu, estudou e procurou, eras tu. Fiquei sempre admirativa perante tanta coisa que acumulavas em saber, ciência, cultura. Por vezes, lembro-me do tão pouco que ainda sei. Envergonho-me. Da procrastinação que desconhecias na vida que caminhavas e que, em sorrisos benevolentes, me censuravas com ternura. Perante o tanto que era o teu, o meu muito nunca deixará de ser pouco.
Naquela madrugada, bombas fazem temer um terceiro conflito interimperialista à escala global. Vejo-o nas imagens de televisão, na sala de espera. Tu, já não as viste.
A caminho da sala de urgências, na ambulância, regurgitavas o que o fígado já não processava. Pedias desculpa aos socorristas por não conseguires controlar os vómitos. Essa dignidade que transportarias sempre. Anita, a vértebra está a dar de si. E doía-me a dor de saber a dor que se ia apoderando de ti. E a ambulância atrasava a velocidade para que sentisses menos a dor que tanto te doía. Desculpe-me eu estar assim, sim? E a socorrista, carinhosamente, sorria. Não tem de se desculpar, senhor Alexandrino. Anita, estás aí? Sim, pai, estou. Estamos quase a chegar ao hospital, pai. Não te preocupes.
Saí do hospital de madrugada. Voltaria umas horas depois, nessa manhã onde bombas anunciariam novo conflito. As últimas palavras.
Os olhos cerrados. Uma agitação controlada sob medicamentos que te limitavam a aflição. Frases que eu não conseguia adivinhar. O combate contra o efeito de drogas que te adormeciam o falar. Apenas o nome. O meu nome. Anita, Anita. Sim, pai, estou aqui. Perguntava: Queres água, pai? E apenas percebia: Não. O esforço em construir uma frase. As drogas que não o permitiam. Anita, Anita... Sim, pai, estou aqui. Um rasgão de agonia, a força que me fazia apertar as tuas mãos. Não percebo o que dizes, pai. Mas não te preocupes. Estou aqui. Anita... Estou aqui, pai, estou aqui.
Pouco tempo depois, silêncio. Duas horas, talvez. Respirar adormecido. Ruídos de máquina inconstantes.
O vermelho de um cravo.
Um sulco de saudade.
25 de Abril, sempre.
Ana
(24/04/2022)