Revia as manhãs e as noites. Gostava de beber do gargalo, andando de divisão em divisão, de garrafa na mão. Os anos cresciam nas olheiras que lhes adivinhavam o longo trajeto. Passeava pela sua biblioteca com os óculos excessivamente graduados, enquanto acariciava o ventre redondo. Ligeiramente curvado, rodeava-se dos fantasmas que o perseguiam nas leituras e nas fortunas que esquecia. Imaginava a sua memória como um baluarte onde apenas as mulheres poderiam entrar. Era uma fortaleza murada, de pequenas janelas, onde a luz não escoava pelas frinchas. Apenas as sombras. Àquelas a quem endereçara o convite para entrar, apenas dava a conhecer partes do muro que as cercava. Um quarto ou uma sala ou um corredor. Apenas ele conhecia os recantos e mundos que, dentro do castelo, fora construindo ao longo de décadas. De repente, sentiu-se cansado. Pousou a garrafa de conhaque numa pequena mesa e, pés descalços, arrastou-se para o largo e usado sofá. Quantos destinos haviam passado por ali? O telefone, ao longe, toca. Acende um cigarro, arfa, balbucia uma asneira, não se move. Pega no comando da aparelhagem e lança “L'Oiseau de feu”. Pensa no deslumbramento que a música provocou no ballet. Nunca foi capaz do desejo da corpulência masculina, contudo exalta-se a imaginar o diálogo entre a feminilidade da formusura de Nijinski e os másculos traços do empresário Diaguilev. A ansiedade que os primeiros quatro minutos lhe atiçam dão-lhe coragem para se levantar. Carrega-se até à estante mais próxima. Parece uma fuga, uma luta, pensa, trauteando. Quando o desassossego se tranquiliza, pega em Assim Falou Zaratustra. O conforto crescente afastara-o da inconformidade do combate que o corpo quando jovem ainda travara. Preferia, agora, um Leroy Musigny-Grand Cru à perspetiva de um confronto que lhe roubasse o castelo edificado. Compreendia idealmente o homem zaratustriano que ia além do homem. Refletia neste super-homem nietzschiano a embriaguez de Freud: o patriarca do festim primitivo. Totem e Tabu. Dialogava com o desprezo que tinha da moral. Ou pelo apetite nietzschiano de a transmutar. O cigarro arrancou-lhe uma tosse rouca. Folheando as páginas, apagou-o no cinzeiro mais próximo. As beatas ofereciam o cheiro ocre do obsoleto e do usado. Arrastou-se, de novo, para o canapé. Ah, suspirou no contentamento de sentir o corpo, novamente, acomodado. Abriu o livro. Numa das páginas, encontrou numa folha esquecida de notas suas. Lia-se, “11 anos antes de morrer, quando já caminhava para a loucura, em Nietzsche contra Wagner, o filósofo escrevera "Wagner condescendeu passo a passo para tudo o que eu desprezo - até para o antissemitismo"”.
Pensou no ego que transcende o homem e no amor das mulheres a que cedera. Sabe há muito que se esqueceu de amar. Preferiu sempre o desejo ao seu objeto. Optou pelo questionamento da verdade ao desconforto desabrigado de uma casa sem teto. Ri-se, condescendente, do jovem e do velho Marx. Devagar, cerra os olhos. Caminha pela Pérsia e assiste à luta fratricida que veria a vitória de Aúra Masda, o deus do Bem. Atento, descortina a presença do profeta Zaratustra. De repente, conduzido pelo vigor de um desconsolo a que não resiste, move-se do lugar de observador em que se encontrava e dirige-se a Arimã, o deus perdedor, estendido no chão. Arranca-o do torpor da inércia e, com ambas as mãos em concha, no ouvido de Arimã, segreda-lhe uma palavra de esperança. Com o vigor dos músculos que as pernas dos anos lhe roubaram, corre, no sono profundo do inconsciente, para o seu castelo. Carrega o deus fracassado e vencido, depois de 1000 anos de domínio. Cuidadosamente, entra nas suas muralhas. Percorre um longo corredor e, ao fundo, num quarto bafiento e sem brechas, estende o deus vencido, com melindre e zelo, e cobre-o com uma manta. Desde então, afaga-o, fala-lhe, acalenta-o, alimenta-se do vigor que nele sentia renascer. Permitiu-lhe, afinal, a vida que o irmão gémeo pressupunha ter roubado.
Uma campainha ecoa pela sala. Acorda agitado. Exaltado, olha à sua volta. Todas as divisões da casa estão trancadas. Tranquiliza-se. Levanta-se e arrasta-se até à porta. Lá fora, uma mulher. Desgastada, curvada, maquilhagem sem brilho, batom rosa desbotado, corpo magro e pele enrugada: sorri-lhe. Voltei, diz-lhe. Em silêncio, ele pega-lhe numa das mãos. Com a outra, acende um cigarro. Fumando, condu-la, vagarosamente, a uma das divisórias da casa, no fundo de um dos corredores. Não conhecia este quarto, meu amor. Na porta, uma chave. O homem destranca a porta e enliça ambos para a divisória. A luz do cigarro permite distinguir objeto ou ser, num dos cantos da parede. De repente, um ruído intempestivo, quase grito, ecoa. A mulher sobressalta-se. Olha o homem. Parece ouvi-lo sorrir. Assustada, corre para fora do quarto, dá voltas com a chave, assegura-se de que a porta fica trancada. Dentro, ressoam estrondosas frases roucas: Se não houver crueldade nem barbárie, alcançamos a Verdade! Precisamos do mal para irmos mais além! Porque a Verdade não existe, meu amor! Não pode existir! Dela, apenas podemos conhecer fragmentos! Abre-me a porta, por favor! Ainda tenho retalhos de vida para beber! A mulher sai de casa. Corre. Lá fora, numa parede, letras grafitadas: « La révolution sera la floraison de l’humanité comme l’amour est la floraison du cœur ». E murmura, Eu nunca fui capaz de te amar.
A sombra era a essência. Os corpos serviam, apenas, para alimentar-lhe o fado e cantar-lhe a fortuna. Graças a eles, a sombra embriagava-se, guiava os passos dos homens pelos atalhos do medo e da noite. Bebia-lhes o vinho. A aguardente. A poesia. Pelo luto do dia, livrava-se ao delírio das vidas que sorvia. Só a lua permitia decifrar-lhe a ténue silhueta, nas trevas das ruas sem rumo. Quando, no entanto, sob as nuvens, a lua se ausentava, a sombra encobria-se no breu e vagava, oculta, sob os olhos cegos dos homens. Empolgada pelo anonimato, errava pelas vielas de becos sem saída. Pelas veredas de mulheres. Pelos risos roucos de homens. Pelo som dos gritos de esquinas mal iluminadas. Exaltava a embriaguez que as ruas lhe ofereciam. E escrevia páginas de poetas vivos.
A luz era intensa. No seu diário passeio pelo mundo dos homens, procurava a sombra que lhe fugia. Queria encontrá-la, cobri-la, submergi-la sob o seu furor e entusiasmo. Um dia, finalmente, entreviu-a. A sombra deambulava, altiva, no interior de um bar bafio e soturno, certa de estar incógnita, esvaziando copos que os corpos, surpreendidos, encontravam vazios. A luz decidiu, então, correr o tempo com a velocidade que a distingue. Baniu a lua, as nuvens e o embaciado do céu. Encorajou a pujança do sol, infiltrou-se pelas frinchas, pelas janelas, irradiou o bar onde, já embriagada, a sombra se esquecera de si, adormecida, cercada de copos entornados pelo chão. Sonhava com os corpos que acariciava com o seu manto, com o sabor do whisky que bebia o sangue dos homens. No bar, apenas se distinguiam algumas figuras esmorecidas pela ebriedade, cabeças estancadas em mesas de madeira suja. De repente, a sombra deu um sobressalto. Pelas fissuras das paredes, das janelas e da porta, a luz irradiara o espaço obscuro e, inesperada e violentamente, capturara-a. Desde então, as mulheres procuram, em vão, a carícia que as enlevava sob ténues luzes foscas e os homens, surpresos, tombados sobre mesas indistintas, creem beber mais lentamente.
Todos os dias, uma estranha silhueta faz-se ver no momento em que a violência do clarão do sol destrona a névoa da noite. São os movimentos da luta que, diariamente, a sombra enceta para combater os grilhões que o vigor da luz lhe impõe.
Um dia, porém, a silhueta deixou de ser vista. A luz, finalmente, fecundara a sombra. Num cais, nascia a madrugada.
Era Dezembro. O calor abria as janelas e as ruas estavam desertas. Nas noites da Barão de Limeira, os almoços ao fim-de-semana enchiam a sala. Hoje, dormiu cá a minha amiga... não comente nada, por favor! Fica descansado, pá! Vamos beber um café e andar pelo mundo? As noites filtravam-se pelas grades que íamos comprar ao boteco da esquina. Esse seu amigo é bonitão, e eu vi ele sair do seu quarto hoje pela manhã... Não comentes, por favor! Eita, mulher, fique tranquila! Vamos almoçar? E entre os quartos discutíamos Marx, Lénine, Brasil, Colômbia, Venezuela, Pátria Grande, Mundo. E estabelecíamos dias de limpeza para cada um. Chuski! Tamos com um problema de baratas na cozinha!, Camilo! Vamos fazer uma pausa e ver uns episódios da série? Ana, você costuma limpar o pó dos móveis? Odeio limpar o banheiro. Aos sábados, o ruído do mercado semanal. Nasceram e morreram amores. Pedaços de luta de vidas que íamos juntando à nossa. Transportamos fragmentos de alegria na memória.
Era Abril. Tu as vu qu’il y a eu um accident sur la route pour Iași? Merde, alors... On y va ou on n’y va pas? As camionetas já não resvalavam sobre a neve da estrada. Já não gelávamos sob as roupas inadaptadas aos colossais graus negativos trazidos pelos ventos de leste. Olhávamos para lá do imponente branco dos últimos meses. Pela janela, campos infatigáveis de uma Primavera que esverdeava as casas. As mulheres punham tapetes à janela, sacudiam roupas, livravam-se do pó. Ovos decorados em tempos de Páscoa Ortodoxa. Caminhávamos entre Mosteiros, barbas e cantos. Comboios. E uma língua.
Era Dezembro. Uma casa, numa montanha rodeada de neve. A primeira vez que nela pisava. Que beleza. Et quel froid, putain... Pouvons-nous rentrer dans la voiture, s’il vous plaît? Je ne tiens plus le froid. Guitarras que tocam Brassens. Prévert. Vian. Manhãs no mercado a recolher os restos que ninguém comprava. O frigorífico cheio. O queijo sempre presente. E a cerveja. O amor que se leva de mão dada pelo país. E pelo mundo. Ah non! Je ne vais pas manger dehors avec ce froid! Je ne peux même plus fumer à l’intérieur! Fais chier, quoi... Allez! O cinema. Os ciclos. A BD. O bar do bairro. O jornal da região. Os amigos que nasceram.
Era Abril. A Guiana que transpira humidade. As Caraíbas que o mar rodeia. Os ponches e o rum que enchem as prateleiras de casa. Ratos que se passeiam pelas ruas. Colibris que entram pelo terraço. Mangrove que alimenta larvas de mosquitos. Árvores que enchem os pulmões da beleza que não consigo. As travessias de fronteiras e a América latina que se abre. A luta que se corre e percorre. O coração em dor na despedida. Abraços encontrados, beijos idealizados, novos espaços que coabitam com a dor que o Adeus separara. A alegria que se tem como certa e vivida quando o choro acompanha a partida. Montanhas. Acampamentos. Ocupações. La lucha sigue!
Era Abril. Feriado. Um cabrito na mesa. Regou-se aguardente, tequila, uma lenta madrugada. O hálito alcoolizado despertou num templo de cortinas violetas. Bonecas ornavam as paredes sem luz. Um candelabro de velas apagadas, um copo de vinho esquecido. Livros sem pó. Uma mesa estendida numa sala rodeada de estátuas. E mortos. Quadros, fotografias, cinema. E literatura. Encontro de um reflexo invertido, quase espelho, sem o ser.
É Dezembro. Um quarto de hotel. Livros espalhados pela cama. Malas abertas e roupa húmida estendida em cabides. Uma televisão em silêncio. Comida entregue à porta que marca os limites dos nossos passos. Música à exaustão, leitura preguiçosa, danças curtas, decisões em certezas. E letras incertas pela madrugada ociosa. Em breve, o reencontro com o enlameado chão gretado que aspira a sugar a força dos passos e a alegria de sonhar.
Lá estarei.
A estrada continua.
NOITE DE NATAL
Abaixo! Abaixo os bajuladores!
Comedores sub-sotainas de velhos corpos prostituídos.
Avé-Maria cheia de graça,
Abaixo! Abaixo os plagiadores!
Imitadores de aforismos, paródias e vidas que soletram.
O Senhor é convosco,
Abaixo! Abaixo os charlatães!
Perseguidores. Manipuladores. Sediosos assediadores.
Bendita sois vós entre as mulheres,
Abaixo! Abaixo os infames assassinos de vidas invejadas!
Falsos moralistas de medíocres projectos.
Bendito é o fruto do vosso ventre,
Abaixo! Abaixo os pecadores em lençóis conspurcados de Avé Marias!
Incapazes gozadores de prazeres que não alcançam. (Desejar o sexo espelhado na mão: Oração! Pagar corpos para saciar líbidos: Cilícios! Masturbar carnes em tentação: Confissão!)
Santa Maria, Mãe de Deus,
Abaixo! Abaixo os afamados arquitectos de aparências!
Ignorantes leitores de caracteres que ambicionam.
Rogai por nós pecadores,
Abaixo! Abaixo os traidores!
Altivos narcisistas que a espinha vai curvando. Corcundas.
Agora e na hora da nossa morte.
Abaixo! Abaixo os hipócritas!
Sequiosos ocultadores da verdade que temem.
Amen.
Orar. Pregar. Mortificar.
Rogai pela extinção de vós, servis algozes, leigos plagiadores, incultos intrujões!
Infames, pulhas e torpes.
Amantes de dólares, patrões e Armani.
Amancebados de embustes.
Ébrios de ameaças.
De cópias.
De fraudes.
De manobras.
Desejosos de oferecer a cunha que fará de vós, S. Exas. expertos em lambe-botas, em S. Exas. botas lambidas.
Temerosos da frontalidade.
Da verdade.
Fervorosos aduladores em ânsias de méritos que nunca terão.
Lamentáveis lisonjeadores de sapatos encharcados de lama.
A vós, a cisma de quem não roga.
Não teme.
E luta.
As sombras de vidas que não sabem vidas. Abraços que nos abrigam. Outros que se ausentam.
Catrapum-pum-pum.
Tinha um corpo. Grande, massivo, opulento. Um dia, regaram-no com gasolina e lançaram-lhe fogo. Chamas reclamaram gritos, consumiram destroços, enrugaram ideias. O corpo tornara-se disforme, ferido, destruído. Abandonado. De vez em quando, alguém passava, atentava para aquela massiva carcaça, dizia, Estou contigo, pá! Se precisares de alguma coisa é só dizeres! O corpo desalmado, num breve momento, reanimava-se, bebia uma caneca, dizia uma piada. O copo vazio, já de partida, de quem pouco tempo antes com ele se sentara, despedia-se, Adeus, pá! Ficas bem, certo?, levando a promessa de uma ajuda que nunca foi. O corpo derrotado olhava, então, em volta, retesava-se, e, desencorajado, deitava-se, sombrio, num velho sofá. As queimaduras choravam-lhe a dor.
Catrapum-pum-pum.
Ela conhecia-lhe bem o corpo. E olhava com assombro a ferida que o cobria. Aquela opulenta massa sem ímpeto pedia-lhe a mão. Ela mira, então, à sua volta. E não vê ninguém. Sozinha, decide carregar o corpo sem socorro. Oferece, então, o que ninguém ousara. Abraça o corpo amorfo, esvazia o seu tecto, os seus projectos, alimenta-o, cuida-o, sustenta-o. A ele e à força que se esvanecia. Assegurou-se de que os restos feridos não perderiam abrigo, estrutura, ar e vida. E a carne, antes em desalento, ganha, pouco a pouco, pedaços de ânimo. Um dia, as feridas desapareceram. O corpo resplandecia, de novo. Sobrevivera.
Catrapum-pum-pum.
Foi então que, inesperadamente, um fogo a inundou. Fugindo da frágil armação de madeira que construíra sobre estacas de projetos, arrastou-se para a rua desabrigada. Tinha dificuldades em respirar, o corpo estava molestado, os pulmões ressoavam lágrimas. Sem tecto, as casas que a embrulhariam no calor. Preciosa amizade que lhe está na vida. Os braços de quem a reconfortaria, protegeria, defenderia. Mas nenhum era o dele. O braço do corpo maciço, antes golpeado, estava ausente. Olhou à sua volta. Procurou-o. Ao longe, rodeado de risos e alegrias, lá o viu. Sem feridas, saciado, redondo e embriagado. Estava sentado. Com um cigarro na mão. Viu-a queimada. Ferida. Não se moveu. Virou a cabeça. Encolheu os ombros. Acendeu novo cigarro, pediu nova caneca, e, na ebriedade de si, riu e cantou.
Catrapum-pum-pum.
Ah! Os vivos que, já mortos, nunca caminharão ao nosso lado!
Notas sem uso. Esboços de esparsos apontamentos em quarentena.
O maior número de praticantes de Sumo encontra-se na Mongólia. O latim foi praticamente abandonado no Império Bizantino, por volta do séc. VII, sendo, então, a língua veicular, o grego (medieval). Ezra Pound, fervoroso apoiante de Mussolini, poeta capturado pelo exército estadunidense, em 1945, declarado louco e internado durante doze anos, foi um dos primeiros tradutores de Li Bai (a partir de uma tradução japonesa). O amendoim é uma leguminosa, da família da ervilha, cujas vagens, que encerram sementes cor-de-rosa, crescem no interior da terra. Quando Mihai Eminescu morre, Panait Istrati tinha 5 anos. O aforismo de Gramsci, “Sono pessimista con l'intelligenza, ma ottimista per la volontà”, tem como base uma afirmação de Romain Rolland. Caffa, hoje Teodósia, na República Autónoma da Crimeia, um dos sete portos localizados na Crimeia que pertenceu ao império marítimo da República de Génova, foi cercado, no século XIV, durante dois anos, pelos mongóis, que acabaram por retirar-se por terem sido dizimados pela Peste Negra. A epidemia espalha-se, contudo, pela cidade, o que força os genoveses a abandonarem Caffa e a dispersarem-se pelo Mediterrâneo, carregando ratos infestados de pulgas que estiveram na origem da segunda pandemia de peste na Europa. 40% de toda a carne bovina importada pela China vem do Brasil. Durante a gravações de Aguirre ou a Cólera de Deus, Klaus Kinski disse que abandonaria as filmagens e Herzog ameaçou-o de morte. La Vie em Rose nasce no momento em que Edith Piaf tem uma relação com Yves Montand. De Casque d’or a La vie devant soi, Simone Signoret teve a incerta coragem de viver a envelhecida beleza.
Rabiscadas num caderno. As certezas leem-se em pedaços de papel: “Não aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que / compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. / Perdoai. / Mas eu preciso ser Outros. / Eu penso renovar o homem usando borboletas” (Manoel de Barros).
Os rios e as pontes.
As navegações e os temores.
Afundar-me nas torrentes violentas dos rios amazónicos. Vacilar no gelo dos afluentes do Danúbio. Beber as encostas do Alto Douro.
“Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a miséria; luta do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade” (José de Alencar, O Guarani). O bom selvagem iluminista que alimenta Peri. A salvação cristã. Códigos de honra de bandeirantes. Representações e imagens adulteradas, mentidas e omitidas: o banditismo, a violência, a violação. Esquecer ombros que carregaram o hoje ainda tão vivo latifúndio brasileiro.
A voz dominante de um Romantismo finissecular.
O Brasil. O Nordeste.
O anúncio de uma miscigenação nascida de um dilúvio amazónico.
Outros Nordestes.
A Roménia. O Prut.
O esplendor de cantos em Mosteiros ortodoxos.
Pássaros que assombram poesias. Amores longínquos, sem carne, desesperançosos. A nobreza de olhares que prenunciam a morte. Campos verdejantes idealizando passados. Velas negras que se afundam em tormentas.
Omite-se a miséria, o frio, a fome.
Vive-se o pessimismo shopenhaueriano. O amor doloroso. O romantismo trágico. Saudoso.
"Etranges tes mots, ton vêtement, / La mort règne sur ta face, / Car tu n’es pas comme moi, vivant, / Et ton regard me glace !"” (Mihai Eminescu)
Botoșani. O amor complexo e rigoroso. O frio do Inverno embebido em vodkas. Viagens em lentos caminhos de ferro. Vidas ciganas em apontamentos.
Lembrar o deslumbrante vigor dos corpos.
Douro. Paraíba. Prut.
Beber rios, romances e poesias.
E um vinho tinto.
“Au nord du rempart se dressent les montagnes vertes”. Do lado de lá da baía, uma central térmica. “La ville, à l’est, est ceinte par les eaux blanches”. Casinos, armazéns, carros e rodovias envolvem o alvoroço da cidade. “C’est ici même que nous allons nous séparer”. Caminhamos em lados opostos do mundo. “Et commence pour chacun la longue marche solitaire”. O exílio cíclico da fuga. “Les nuages flottants reflètent l’état d’âme du voyageur”. Resíduos de cinza submergem aviões em terra. “Le soleil couchant comprend si bien les sentiments de l’amitié”. Gestos e raivas numa lua sem madrugada. “Un geste de la main et à chacun sa route”. Desvios nos caminhos e desejos em luta. “Laissons les hennissements des chevaux entrer en résonance”. A ressaca do vinho afunda-se no estrondoso eco de um aeroporto em descanso.
Texto em francês: Li Bai (701-762)(poema traduzido por Le Clézio e Dong Qiang)
Ouvir corredores. Um copo de vidro em tragos. Servir uma cerveja. Uma janela numa pista de aterragem. Percorrer sem temor. Chãos, sonos e sonhos sentados.
Entranhar a terra unificada por Kubilai no Império Yuan. Parte de um mundo que o neto de Gengis estendera aquém das estepes mongóis. Que devorara a China, o Oriente Médio e a Ásia Central. Embrenhar-me no solo que, ainda hoje, para lá do Mediterrâneo e do Atlântico, nem sempre se desenha com precisão. Mergulhar na República Popular parida de uma Revolução. Reunificação e libertação.
Não ceder é resistir à vontade do Outro.
Não fugir ao medo de ser.
Ser corsário. Lascivo. Sedutor.
Ser só.
“Las cosas son lo que yo quiero que sean o no son. / No porque no puedan convivir conmigo / sino porque nunca saben lo que son.” (Jorge Teillier)
O fingimento de criar linhas de vida. Corto, o pirata marinheiro que traça caminhos a navalha na palma de uma mão: “Je suis l’océan Pacifique et je suis le plus grand. On m’appelle ainsi depuis très longtemps, mais ce n’est pas vrai que je suis toujours pacifique”. Sermos nós e sermos o resto. E outros. E coisas. Maiores e Piratas.
Ser corsário. Lascivo. Sedutor.
Ser muitos.
Resistir é saber castigos que nos crucificam numa jangada. Uma balada na prisão de um mar salgado. Entrar no corpo de uma Pandora. Não temer o esmagamento do céu. Negar o lamento. Voz no silêncio da rebelião. Denúncia de farsas sem temer tragédias. "Nenhum lamento. É preciso olhar a morte de frente. Lágrimas, só quando você estiver sozinho! Todos nós mergulhamos num mar de lágrimas. Silêncio. Silêncio". (Federico García Lorca, A Casa de Bernarda Alba).
É o Sim negado.
Ser capitão. Marialva. Marinheiro. E sonhador.
É o estrondoso troar do Não.
A noite de finais dos anos 90 explorava-nos tempos e corpo. 45 horas semanais, primeiro. 40 horas semanais, depois. E ainda assim, o ânimo do toque de fim fazia gastar as felizes gorjetas em madrugadas de horas longas. Foi lá que encontrei um demorado e terno amor. Tu eras mais ambiciosa na vida do que eu, Maria. E surpreendi-me com o meu sobressalto. Como é que 25 anos depois nos reconhecemos nas palavras?
Maria.
Abraçámo-nos no sono da agora lenta madrugada.
A ternura e violência de um amor caminhados por geografias de histórias. Devoradas. Dilaceradas.
Os limites de um sôfrego afecto sem fim.
Je ne t’ai jamais autant aimé qu’à ce moment-là, Ana.
Um homem. Homens.
Ana.
O progresso contra a cruel ignorância. A luta possível pelo mundo possível.
O amor como herança. Como crescer. Como ser Mulher.
O legado da carne e das lutas que nos agem os passos. Que nos atiram longe de portas. Que nos limpam a conformidade da pele. Que timidamente nos sussurram, Magdalena, Cuídate.
Magdalena.
Vivos que nos dão a força da vida. Que nos cantam. Que nos ensinam a inconformada voz. Que connosco carregam o sonho.
“Mortels, mortels
Nous sommes immortels
Je ne t'ai jamais dit
Mais nous sommes immortels” (Alain Bashung).
Imortais que Cantam. Que Ensinam. Que Carregam.
Amigos. Camaradas.
Pai.
“Tu dás-me a força da vida,
eu dou-te a minha canção” (António de Macedo).
Um Belmondo que se esvanece perante a grandeza de uma Sophia Loren. Belíssima vida e agitado corpo. Terna esperança a caminho de Ciociara e tirânica desilusão no retorno a Roma. Morrer confiando sonhos. Sem a suave tristeza perdida. Partindo com a tranquilidade de um sorriso: Michele. Viver respirando tragédias. Com os bestiais destroços presentes. Caminhando com a agressão de corpos violados: Cesira. E Rosetta. O meu pai está ao meu lado na sala. À saída, Eh pá, a Sophia Loren abocanha a tela, ou qualquer coisa parecida, Já não me lembrava deste filme. De Sica, o mesmo que nos fizera percorrer a miséria de Roma com o Antonio Ricci em busca de uma bicicleta.
A violência da vida. A tranquilidade da morte.
Inventar vidas para viver. Compor instantes de tempos para oferecer fingidas alegrias e sentidos amores. Amor e felicidade em difícil diálogo. Ou talvez nunca quase fácil.
“O grande amor da minha vida, à semelhança de todas as paixões veementes e sinceras, não foi, não podia ser feliz, e dava para uma linda novela que só teria o defeito de a verdade parecer inverosímil” (Manuel Teixeira-Gomes).
A morte e os seus sentidos. Quando vida e vidas ficam. E sonhos. E alegrias. E frutos.
Sem o medo.
Fim trágico ou fim fabuloso, o enlevo da morte de Costello: dever, honra ou loucura de um Samouraï de Melville na França de 60.
Viver, inventando sonhos, para morrer deixando sementes. E pedaços da nossa carne. E dos nossos projetos, ideias e certezas.
A vida e os seus sentidos.
Para Ezra Pound, “an image is that which presents an intellectual and emotional complex in an instant of time”. O instante de Pound existe graças à articulação, desdobramento ou superposição de imagens. Não considera a imagem sem ritmo, sem emoção, sem ação. As imagens justapostas, dialogantes, multiplicadas, são tempo, agitação, movimento. São vida. São a visibilidade do invisível. São a presença da ausência.
Não há pensamento sem imagem. Não há linguagem sem imagem. Não há texto sem imagem.
A ausência de imagem é esquecimento, desmemória, desconhecimento.
Quem sou. Onde estou. Existir. Significar. O vísivel não contesta. Não diz. Não responde. Porque não sabe.
Sinto-me onde não fui.
Vejo-me em veredas de corpos que gastei.
Devoro-me em cafés que mastiguei.
Sorvo-te num Mar Negro de montanhas.
Oiço-te na foz de um Danúbio.
Piso-te na agitação de um Amazonas.
Mergulhando na alegria de um abraço.
De um amigo.
De um camarada.
De um amor.
“Noto à margem do que li / O que julguei que senti. / Releio e digo: "Fui eu ?" / Deus sabe, porque o escreveu.” (Fernando Pessoa)
Terras. Paixões. Geografias.
O Amor.
A Luta.
Sobreposição de imagens.
Corro, acelero o passo, sigo ferozmente em frente, corro com a alegria da certeza do caminho tomado, com o júbilo da felicidade que se imagina encontrar, e, repentina e inesperadamente, um vulto aproxima-se das margens da estrada. Sorrateiramente, estica o pé. Não o vejo, não o reparo, continuo a corrida, e o pé estendido, oculto, ali está, aguardando-me. Quando, surpreendida, o reparo, o vejo, assusto-me, desequilibro-me, tropeço. E é com estrondo e violência que caio no chão. Feridas rasgam-me a carne. Um grito ecoa. Olho para trás. O pé traiçoeiro retrai-se, vejo um corpo mover-se, esconder-se, desaparecer por entre a lembrança possível do que achamos ver quando não olhamos em frente. Pareceu-me reconhecê-lo. Mas para quê persegui-lo, agarrá-lo? Fazer o quê, com a pérfida rasteira? Levanto-me. Sacudo o pó e as pedras do corpo. Deixo as feridas abertas. Vou andando, andando, acelerando novamente o passo, ganhando novo alento, e parto para nova corrida.
19 anos de emigração.
Guardo cada pedaço de alegria que a memória traz. Escrevo-o. Fotografo-o.
A lembrança que traz Saudade.
Mas também ausências.
“Cambia el pelaje la fiera
Cambia el cabello el anciano
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño” (Julio Numhauser).
Hoje, numa madrugada num quarto de hotel, olho para vidas que a memória me garante ter vivido.
Descanso lembranças em sono lento. A paixão pelas terras e pelos homens. A China que os livros e os passos passeiam. A luta dos povos cria magníficos exemplos de resistência e de esperança. Nas vitórias. E nas derrotas.
“Cantamos porque llueve sobre el surco
Y somos militantes de la vida”.
O saber, o ler, o conhecer, o pisar e o tocar anseiam a China que se abre para lá das Portas do Cerco. Mas é a América latina que me rompe o corpo. As imagens, os sons, as memórias, os beijos. As danças. E as vozes que se alçam na poesia da luta. “Y porque no podemos ni queremos Dejar que la canción se haga ceniza” Tentando caminhar pela história da China, confinada num quarto macaense, grito a dor do mundo que o sentir partilha, duvida, busca na geografia e na voz que canta.
“Cantamos porque el grito no es bastante
Y no es bastante el llanto ni la bronca”
Do lado de lá da janela, para lá do aeroporto em silêncio, adivinho Ká-Hó. Um pouco mais longe, cheiro o Pacífico, sobrevoo os Andes, leio Benedetti no café San Jose, oiço o coração de um argentino, canto em ocupações que exigem a terra do latifúndio, danço em noites culturais numa Escola onde se ensina, aprendendo, subo à violência do garimpo da Amazónia, acordo com colibris numa casa da Guiana, bebo uma Parbobier numa esplanada de Paramaribo, sinto o peso de uma pepita de ouro, cheiro o rio Magdalena, abraço a paixão dos homens pelas montanhas, escorrego na areia costa-riquenha, agarro o México com as ganas de um amor sem limites, olho para a fronteira da Guatemala rodeada de crocodilos, caminho pelas barricadas da APPO, bebo um café em Tucson, entranho as Caraíbas e deixo-as sugar-me o suor.
“Cantamos porque creemos en la gente
Y porque venceremos la derrota” (Mario Benedetti).
Vinda de longe, em plena madrugada, a voz de Magdalena irrompe pelo quarto.
O mundo e os seus amores.
A cerveja bebe-se tépida. O aeroporto canta a noite onde o corpo aterrara cansado. Forró cantado e dançado à exaustão. Brega: “E hoje o que encontrei me deixou mais triste / Um pedacinho dela que existe / Um fio de cabelo no meu paletó”. Cantamos a alegria da cantiga numa cozinha. A madrugada de Guararema filtrando as vozes embriagadas. Sem Terra. Segundo dia e a memória desorganiza-se. Não projeta, não imagina. A janela, olhando-a, e ela, olhando a janela, recuando na lembrança que as imagens lhe trazem. “We will always have Paris”: não, não a teremos sempre. E que pena que eu tenho. “Los caminos de la vida / No son lo que yo esperaba”, o vallenato ecoa pela Floresta: os aviões ainda não chegaram para nos embrenharmos pelos caminhos de terra húmida onde as botas de borracha se entrerram, Ak-47 em ombros que carregam a vida da luta, os passos apressados. “Qu'est ce que je peux faire? Je ne sais pas quoi faire!” E a Anna caminha, pés descalços enterrando-se na areia, no amor de um Belmondo que, quatro anos antes, beijara uma Jean Seberg nas ruas a preto e branco de Paris. Lee Van Cleef encarando um Clint Eastwood sob um azul que queima os olhos: bebo mais um café.
Nem todos conseguimos amar. Muitos não o sabem, ainda que achem que sim.
O assalariamento onde paira a ameaça do despedimento. A resistência. A Internacional que acolhe, na primeira cena, o comboio que parte em 1900. A traição, a mentira, o oportunismo: há quem a todos sempre resista e, mesmo quando a Morte vence o jogo em xadrez, caminhe em vida de braço dado com os vivos; há, todavia, quem a todos sucumba e caminhe já morto, ainda que nos possa parecer vivo. São muitos os mortos que nos cercam. A vida tem este quezinho de ir ensinando, a quem a sabe ler, as vidas vivas e as vidas mortas: “Vous verrez que les morts nous appartiennent si nous acceptons de leur appartenir. Croyez-moi, nos morts peuvent continuer à vivre”, dizia Julien Davenne, ou François Truffaut. Comigo, apenas caminham os vivos. Os outros, aqueles que desconhecem a esperança e o sonho, vão-se diluindo numa memória que os vai abandonando, sós e tão distantes: “Vivre sans espoir, c'est cesser de vivre (Fedor Dostoievsky). Viva, pois, a esperança; Viva, pois, a alegria; Viva, pois, o sonho; Viva, pois, a utopia feita projeto; E um Viva aos vivos que não morreram porque não morrem, tal como nunca morrerão.
Amanhã: terceiro dia de quarentena. Já pedi para entregarem na recepção uma corda de saltar. Letras e imagens embaralham-se, confinadas que estão em menos de 20 m2.
A corrida que se faz de volta. O coração em dor que se deixa em caixas que se empilham, fechadas, numa garagem. Tempos de pandemia e a pressa do bilhete que se troca em desalento. Sábado e Domingo para o Adeus sem tempo. O telefone que toca. Toca sempre. As mensagens que se escrevem. Os cafés bebidos à pressa. Frankfurt que acolhe o Inverno num quarto aquecido. Singapura pelos corredores assépticos que se correm em fila indiana. Uma quarta-feira que marca o primeiro de 21 dias com a repetida vista para o aeroporto que traz de volta quem nunca saiu com o corpo com que aterrou. As janelas que não se fecham. Nem abrem: "Devagar… as janelas olham" (Carlos Drummond de Andrade). O café solúvel que acolherá as letras que se derramarão em conversas. Comigo. E vocês. O desajuste de um sono em ansiedade. Por vezes de pedra. A quem tanto quis ver e não vi, nem revi, aos almoços, cafés e cervejas adiados, Até já. Desculpem-me os atrasos, adiamentos, reviravoltas do tempo. E que o já seja breve. O tempo, afinal, cria laços. Desamores e esperanças. Não conseguem proibir-nos o sonho. Nem a força que move as lutas. O amanhã acordará sempre a resistência de quem não esquece. Nem perdoa. Ser livre sempre. O amor. Os amigos. A certeza do mundo que nos faz andar mundo.